|RASPANDO A CABEÇA|


Claudia Paixão Etchepare



No dia 29 de agosto de 2015 meus cabelos se entregaram aos primeiros sinais da químio.
Não muito tempo havia se passado desde que uma extenuante sessão experimentando perucas tinha me deixado em dúvida sobre qual modelito comprar. Sem pressa, eu e minha filha achamos por bem adiarmos para uma outra ocasião o momento de bater o martelo sobre assunto tão delicado. Estas coisas demandam calma para serem absorvidas, concluímos.
No entanto, num revés do script original, lá estava eu de volta ao local discreto e elegante, especializado em atender pacientes em tratamento de quimioterapia, com meu marido à tira colo, somente transcorridos alguns dias do fato acima narrado. Tudo foi resolvido em caráter de urgência, pois tufos de cabelo desprendiam-se da minha cabeça feito folhas de outono.
Dali saí na companhia da minha nova melhor amiga: uma peruca com o clássico corte Chanel, só que levemente assimétrico. Ela emoldurou com dignidade meu rosto ainda rechonchudo, desprevenido sobre o novo shape angular e alongado que logo ganharia. Nos 7 meses subsequentes, quatorze dos meus quilos bateriam em retirada sem a menor cerimônia, ironicamente, depois de anos de combate.
O próprio local oferecia a cortesia de raspar a cabelo e entreguei-me ao ritual, sentindo-me um pouco atropelada pelos fatos, confesso. A cena me vem à mente em câmera lenta. Era uma salinha privada, um espelho tomando quase toda a extensão da parede, grande o bastante para enquadrar a cadeira ampla e confortável que me acomodava, destas típicas de salão de beleza. Meus olhos percorreram maravilhados a carreira de lâmpadas estilo camarim que o debruavam, e não pude deixar de pensar no esmero destas pessoas tentando amenizar o sofrimento do outro. Eu tenho uma cicatriz aqui atrás, disse afoita, tome cuidado. Um acidente com um balanço de ferro na minha infância tinha deixado sua marca.
Ansiedade e curiosidade dividiam espaço em meu peito. Será que a forma de minha cabeça é bonita? Redonda, bicuda? Será que a cicatriz vai se destacar muito? Uma certeza: qualquer que fosse o resultado, o meu marido teria a palavra certa para dizer, essas coisas que abrandam e enfeitam a vida quando ela mais precisa.
Meio caminho andado e comecei a relaxar. So far, so good, pensei. A cicatriz tinha se revelado pequena e a parte da cabeça raspada estava bem decente. Eis que minha algoz faz um giro rápido da cadeira de modo que permaneço de costas para o espelho até ao final do processo. Longos minutos no vácuo e, então, trabalho concluído, a senhorinha de aparência acentuadamente germânica me rodopia à posição original.
Não tive um choque, nem tampouco tive palavras, simplesmente me gostei. Entre pensamentos meteóricos, tudo que consegui foi esboçar um leve sorriso. Lembro-me de arfar pesadamente numa tentativa de expulsar a tensão interior, não sei foi exatamente neste momento. Bem, é o que temos e até que não ficou tão mal, foram as reflexões que acabaram por selar o veredito sobre o caso. Tocar a minha careca me deu muito prazer. Afinal, qual a chance que temos de fazer isso em toda uma vida?
Aquela tarde transcorreu de maneira insólita. Entre caras e bocas, eu e minha filha testamos penteados na peruca e vestimos minha careca em diferentes estilos usando a minha coleção de echarpes de vários idiomas, recentemente acrescida de hijabs e shaylas. Tínhamos estado em Dubai há menos de um ano e ainda podia ouvir o repicar da voz com sotaque árabe explicando sobre lenços e véus: eles separam o homem de Deus. Pequenas gotas culturais que te impulsionam à reflexão, não é mesmo?
Brincamos, rimos muito e elaboramos a novidade com vagar, tempo sagrado desfrutado em doce cumplicidade. Faixas coloridas, boinas e voilà! Carreguei minha existência com tímido charme e uma boa dose de respeito ao que a vida me reservara.
Naquele dia 29 de agosto de 2015 não tinha ainda a total compreensão do caminho árido que embarcava e da trama complexa que começava a se costurar. O tempo passou. Truncado, compassado, dilatado. A Providência foi pródiga e, caminhando lado a lado, tivemos uma longa temporada de férteis reflexões.
Aos poucos, minha cabeça cobriu-se da relva fresca que germina um novo ciclo.
No mês de fevereiro de 2016, como cobra que descarta a pele, assumi a minha nova identidade visual. O simples fato de expor minha cabeça em público – os fios mal atingiam 2 cm - me fez experimentar uma nova forma de empoderamento.
E foi assim que um inesperado viés do universo se apresentou à minha vida.
Com muitas das minhas certezas subvertidas e algumas crenças amotinadas, senti-me, inefavelmente, mais próxima de Deus.

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Claudia Paixão Etchepare

E-mail: claudia.paixao.etche@gmail.com

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