NATAL DE CÃES


Claudia Paixão Etchepare

Havíamos nos isolado em uma pequena praia no litoral do sul do Brasil em um singelo hotel à beira-mar. Era uma semana para expurgar criaturas sinistras que haviam nos visitado. Nem mesmo sabíamos como ou se celebraríamos o Natal, se comeríamos peixe, ou pizza ou, quiçá, peru? Não importava. Ansiávamos por sol, água do mar e o ar costeiro, munidos de todo o tipo de crenças e expectativas catárticas que criamos quando estamos no nosso limite.

Encerrando um ano atípico e inquietante de lockdown pela COVID, houve duas emergências médicas na família, não relacionadas ao vírus. Ocorridas no final de novembro e início de dezembro, enfileiradas e sobrepostas, implicaram em horas dentro de hospitais e em episódios de decisões delicadas. A alta do hospital de um dos membros da nossa troupe, ainda debilitado, apenas dois dias antes da reserva do hotel, foi o desassossego gota d´água. Ir ou não ir? Decidimos ir.
O plano básico era estarmos juntos fazendo o que há de mais prosaico numa vida: desfrutando de dias comuns, sem sobressaltos, onde a regra entre nós quatro era uma única: cada um faz o que quer.

Estava orgulhosa de ter orquestrado o plano e ter conseguido levá-lo a cabo apesar dos revezes. Por vezes, no entanto, era atravessada por uma certa estranheza. Morna e quase secreta, uma pergunta aninhava-se no meu peito: Como pude eu ter induzido meu marido, filha e enteada a transgredir uma tradição arraigada nas nossas vidas por gerações? Assim, tão desrespeitosamente não cumprindo o ritual natalino? Estimulando-os a subverterem as regras?
Este mal-estar colateral me assaltou em momentos esparsos da nossa semana, entre uma não atividade aqui e um não compromisso ali.

Seguindo o script previsto, caminhamos, bebemos, rimos, comemos frutos do mar sem hora e sem medida. Aposentamos todo e qualquer aparelho de medição ou de regulamentação. Me expus ao sol como não fazia há anos, ficando bronzeada à moda dos pescadores que partiam com suas redes ao amanhecer.

No último dia do nosso descanso natalino, fomos eu, meu marido e o nosso cão dar uma volta na praia e desfrutar da brisa da tardinha que nos enchia de frescor. Ufa! Tudo tinha dado certo. Subimos em uma pequena duna, e lá do alto observamos o entorno em sublime reverencia à natureza.

Eis que, como em uma miragem, vimos as figuras de três cães delinearem-se à distância. Caminhavam em grupo, saltitantes, brincando de pular uns por cima dos outros, bocas escancaradas de prazer. Caminhavam ao longo de uma rua perpendicular ao mar e, após cruzarem a avenida costeira bem diante dos nossos olhos, entraram para a praia pelo acesso rudimentar entre os morros de areia. Eram vira-latas de porte grande e pelo curto, todos os três, imponentes em suas figuras, mas irreverentes em atitude. Acompanhavam-se como três amigos se acompanham quando resolvem fazer um passeio até à praia para curtir.

O de pelo negro foi direto para o mar enquanto os outros dois - um marrom e outro bege-acinzentado — sentaram-se na areia a observar o amigo e os poucos frequentadores da praia. Na água, o cão brincou como uma criança, pulando ondas, mergulhando e dando pinotes de alegria. Depois, voltou a juntar-se aos amigos e travou um diálogo com eles que eu e meu marido, incrédulos, interpretamos da mesma forma:
— Ei, seus maricas. Tão com medo da água fria? Vamos lá, vamos entrar, o banho está ótimo!
Imediatamente os dois levantaram e dirigiram-se para o mar, comandados pelo mais aventureiro. Os três interagiram se divertindo na água, uma cena digna dos clássicos de Walt Disney. Depois, saíram juntos e puseram-se a correr ao longo da orla, perseguindo as gaivotas, tentando abocanhar a espuma alva que envolvia suas patas em vai e vem.

Que boba que fui me deixando infiltrar por culpas descabidas. Ao observar os cães, o entendimento me veio como um flash: Por que precisei passar por episódios de ansiedade e questionamentos para aprender o que os cães já sabiam?
E assim eu ganhei meu presente de natal, trazido por três cães de rua, feito reis magos: o entendimento de que devemos ser plenos no exercício das nossas vontades e integrais no propósito do momento, mesmo que signifique subverter convenções.

Só para marcar o novo paradigma, comi peru e sarrabulho no Ano Novo, enquanto imaginava em que aventura estariam envolvidos meus mentores caninos naquele momento.

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Claudia Paixão Etchepare

E-mail: claudia.paixao.etche@gmail.com

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