O PAÍS BASCO


Claudia Paixão Etchepare

Meus olhos percorriam suas linhas na velocidade de trem bala. Lia o livro ‘A Alma Basca’, de Ana Luiza Etchalus. Em meio ao delicioso relato, me deparei com o meu sobrenome – Etchepare – em uma lista de nomes típicos bascos. Sempre soube que o meu sobrenome era basco, mas não sabia exatamente o que era ‘ser basca’.

No exercício da convivência com Ana Luiza e outros bascos por ela me apresentados, descobri a magnitude deste legado que eu desconhecia. Fiquei envaidecida ao reconhecer em mim a tenacidade dos bascos, um povo altamente produtivo e zeloso por seus costumes. A garra basca é colocada não somente nas reivindicações dos movimentos separatistas, mas em absolutamente tudo que fazem.

Engajada em preencher lacunas da história dos meus ancestrais, me propus a uma missão quase impossível: aprender euskera, a língua basca. Na primeira lição aprendi que para dizer “obrigada” devo dizer “eskerrik asko”. Foram horas de esforço que resultaram em um conhecimento pífio, especialmente para uma professora de línguas.
Entre os mistérios deste grupo étnico de cultura milenar está a língua basca, que é considerada uma ilha linguística, sem semelhança com qualquer língua viva ou extinta.
De posse de rudimentos da língua, chegou a hora de fazer uma viagem ao País Basco.

Há lugares, e lugares. E há o País Basco. Vales verdejantes, picos de montanhas e costas azuis acolhem os bascos entre duas grandes nações europeias, a Espanha e a França. É uma pequena extensão de terra que, na verdade, não é um país. É uma comunidade autônoma, com direitos assegurados pela constituição espanhola. É a segunda região mais industrializada da Espanha, após a Catalunha. Uma parte minúscula do seu território é localizada na França, onde os brios separatistas não são tão acirrados.

As culturas francesa e espanhola mesclam-se carinhosamente, mas um basco não é espanhol nem francês, é um basco!

É uma região de contrastes. Cidades vibrantes como Bilbao, um espaço cultural ímpar que sedia um museu Guggenheim, contrastam com pequenas aldeias, incrustradas ao pé dos Pirineus, onde vimos peregrinos cruzando rumo a Santiago de Compostela. O sincretismo da religião católica e da mitologia ancestral basca é aparente. É comum, por exemplo, encontrar um barco pendurado no teto de uma igreja católica para desejar boa pesca e fartura.

Alugamos um carro em Bilbao e pontuamos no mapa a cidade de San Sebastian - Donostia, em euskera - como nosso destino. No caminho, vilarejos nos seduziram a dar um passeio por suas entranhas milenares. Ruas de pedra, casas brancas com vigas e janelas caprichosamente pintadas de verde e vermelho, cores da bandeira basca, ares medievais por toda a parte.

Chegamos a San Sebastian. Estávamos na meca gastronômica basca, com chefs estrelados internacionalmente. E tínhamos uma reserva em um restaurante especial para às dez da noite, conforme costume espanhol de jantar tarde. Ao entardecer, entramos em um bar a poucos passos do nosso hotel para provar uns pintxos - equivalente a tapas em espanhol- e beber um Txacoli, vinho típico da região. O bar fervilhava de gente e fomos instruídos sobre a tradicional ronda a pé por bares localizados a poucas quadras de distância, cada um com a sua especialidade em pintxos. Fomos, sem muito esforço, cooptados pela ideia. Ao chegar no hotel, caímos no sono e acordamos já passada da meia noite. Perdemos a reserva.

A longa e convidativa faixa de areia em formato de meia-lua da Playa de La Concha é mais um encanto desta cidade costeira que sedia o tradicional Festival de Jazz e o consagrado Festival de Cinema. O passeo ao longo da elegante boulevard é limitado por um balaústre estilo francês, onde bancos de praça debruçam-se sobre a baía da Biscaia, abençoada pela brisa do Oceano Atlântico.

Poucos quilômetros adiante, estrada impecável, e já nos acercávamos da fronteira com a França. À beira mar, encontra-se Hondarríbia, separada da França por um rio. É um daqueles lugares que a gente não consegue parar de fotografar. Exploramos a pequena cidade por trás das lentes das nossas câmeras cobertas de gotículas, uma chuva miúda nos acompanhou durante toda a visita. As fotos ficaram lindas.
Ao tomarmos o rumo para sairmos do pequeno território basco da Espanha e adentrarmos a minúscula porção basca francesa, paramos em uma sinaleira da avenida principal e meus olhos pousaram distraidamente na placa colocada em um edifício de pedras cor âmbar e li: Bernart Etxepare Kalea. Esta kalea, rua em euskera, chama-se Etxepare, uma das escritas originais do meu sobrenome.

Uma discreta sinalização anunciou a troca de país.
Saint-Jean-de-Luz, a primeira cidade no país basco francês, é uma comunidade pesqueira representante do puro charme basco, com floreiras faceiras pendendo dos prédios e pequenos bistrôs com pescados servidos como obra de arte em travessas.
Bayonne é a nossa próxima parada. Glamourosa. Imponentes construções de pedra. Sensivelmente maior que as localidades anteriores, com ônibus elétrico e bicicletas emprestadas pela Oficina de Turismo. Bayonne tem nos mestres chocolatier e no seu presunto, o famoso Jambom de Bayonne, duas boas razões para visitá-la, mas o Museu Basco é atração imbatível. Em uma casa que é um verdadeiro monumento histórico, datando do século XVI, encontramos objetos que traçam a história e a cultura do país Basco através de séculos.

Em uma noite de névoa fina e gelada, saímos do hotel a pé, cruzamos a ponte — com nossas mantas enroladas até o nariz, e escolhemos um dos restaurantes à margem do Rio Nive para jantar. Ali, provei a terceira maravilha culinária da região: o gâteau basque, um bolo de baunilha sofisticado e singelo, como tudo basco.

Em todo o País Basco meu sobrenome era prontamente reconhecido, mas em Bayonne uma frase era acrescida a este reconhecimento: temos muitos Etchepares aqui, eu mesmo tenho um amigo, um vizinho, que tem este sobrenome. Assim descobri o berço dos meus antepassados. Meu sobrenome é basco francês e sua escrita com "tch" comprova.
Nem mesmo o impacto do balneário Biarritz, visitado a seguir, frequentado por celebridades nos anos 60, arrancou Bayonne de meu coração e do status de minha favorita.

O povo tem uma rara ligação sentimental com seus lares. Sobrenomes bascos descrevem a casa ou a região local do seu lar ancestral e é comum traduzir os sobrenomes como “casa vermelha, do rio, perto da igreja”. O meu sobrenome significa casa nobre. Paradoxalmente, os bascos definem sua identidade nacional usando o termo euskaldunak — basco-falantes: basco é toda e qualquer pessoa que fale euskera, independentemente da sua origem ou de onde more.

Aprender intricadas estruturas da língua não me prestou muita ajuda na hora de decifrar as placas, que pareciam nos xingar, e os sons do povo soavam como falas de um filme mitológico. Entretanto, parti preenchida de sensações e conhecimentos bem maiores do que os meus olhos e ouvidos humanos captaram. Trouxe comigo uma cultura absorvida pela minha memória milenar. Descobri que certos vínculos essenciais com suas origens estão no DNA, e são disparados por gatilhos, podendo ou não se manifestarem durante uma vida. Atravessam impávidos milhares de anos esperando serem requisitados.

Pois eu requisitei meus vínculos de origem e hoje digo de peito estufado: sou basca!

E, em meus momentos de quietude, pareço ouvir vozes internas dizendo em coro: Ongi etorri! — bem-vinda, em euskera.

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Claudia Paixão Etchepare

E-mail: claudia.paixao.etche@gmail.com

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